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domingo, 29 de junho de 2014

Novo conto: Anjo da Guarda

Centro do Rio. Meio-dia e quinze. A Cidade Maravilhosa, em polvorosa, com as pessoas se dirigindo e saindo dos restaurantes. O rush de pedestres na hora do almoço.
Paulo sai do restaurante, decidido a pagar contas primeiro. Vai atravessar a Primeiro de Março, no sinal da rua do Ouvidor. Pelo menos, não demora tanto a fechar. Depois vai comprar os descartáveis de plástico para a festa de logo mais.
Gostava das festividades e congraçamentos do escritório. Uma chance de se desestressar, conhecer um pouco mais os colegas e as colegas de trabalho. Paulo sente um pouco de vergonha por misturar negócios com prazer; espanta-se com o que vê do outro lado da rua.
Uma mulher linda, loura, de olhos azuis e cabelos cacheados, num vestido revelador. E ela não usa nada por baixo. Paulo se pergunta como aquela mulher não foi presa, e também por que ninguém olha para ela. Até que entende: um homem chega para atravessar a rua do outro lado, e para onde ela está.
Paulo arregala os olhos. Esfrega-os. Pisca. Não há mulher alguma. “Preciso parar de dormir tarde e acordar cedo”, pensou. Sabia dos efeitos da privação do sono, e que alucinações estavam entre os sintomas. Preferiu ignorar tudo.
Atravessou. Na rua do Ouvidor, um senhor pregava, dizendo que um abismo se abriria, e que todos os pecadores seriam arrastados para o inferno. “Insistente, esse cara. Não vê que todos estão ignorando o que diz”, Paulo imaginou, apenas para ser interrompido pelo início da cantoria do pregador. Um hino, provavelmente evangélico. Paulo se deu conta de seu preconceito contra aquela religião, e inconscientemente pediu desculpas.
Estava para cruzar a rua do Carmo, quando viu outra mulher, linda. Negra, com os cabelos crespos e curtos, os olhos negros penetrantes, e o mesmo vestido revelador. Nada por baixo, a não ser um lindo corpo feminino. Paulo parou, e foi imediatamente abalroado pelo pedestre que vinha atrás. Pediu desculpas, e se encostou na parede de um dos prédios, sujando sua camisa social branca.
A mulher olhava diretamente para ele. Paulo desviou o olhar, envergonhado por encará-la daquele jeito. Sabia que sua atitude não era respeitosa. Olhou para baixo, tentando desesperadamente não olhar para aquelas formas perfeitas, aquela beleza intensa. Não aguentou: olhou novamente, apenas para ver um casal atravessá-la. Mas ela continuava lá, e o encarava tão fixamente, que ele ficou desconcertado.
A cantoria do pregador estava ainda mais alta. Paulo, entretanto, só conseguia ouvir aquelas palavras: um abismo vai se abrir, e os pecadores vão cair nele. Olhou na direção do homem que cantava, e se voltou para a mulher. Sumiu.
Paulo sacudiu a cabeça, esfregou os olhos e a testa, e soltou um longo suspiro. Entrou no banco, desceu as escadas, pegou senha. Sentou-se. Passava um desenho de animação stop-and-go na televisão. Coisa de criança.
Começou a olhar em volta, até que viu, no canto próximo às escadas, outra mulher. Oriental. Cabelos negros, olhos puxados. Estava séria. Paulo nem percebeu tanto o corpo escultural por baixo daquele vestido translúcido, quase transparente, tal era o olhar: misto de preocupação e reprovação. Envergonhado, baixou a cabeça para não admirar aquele ser sublime.
Um aperto nas têmporas o fez levantar os olhos e mirar aquela bela mulher. “Que japonesa gostosa”, disse para si, tentando baixar os olhos, reprovando seus próprios pensamentos. Não conseguiu: sua cabeça foi virada na direção daquela beleza angelical, e a viu fazer um sinal, batendo levemente com a ponta do dedo indicador no ouvido.
Paulo ouviu um apito tão alto, que se encolheu. Os dois outros clientes que esperavam a vez olharam para ele, assustados. O vigia do banco deslizou sorrateiramente a mão de dentro do colete para o coldre. Paulo fez de conta que estava com tosse, e se levantou para pegar um copo d'água.
Ela continuava lá, fazendo o sinal para que ouvisse algo. O apito diminuiu rapidamente, até ser substituído pelas palavras do pregador. “Já sei, já sei, um abismo vai se abrir e os pecadores vão cair nele”, respondeu mentalmente. Já sabia que ninguém mais via aquelas mulheres, a não ser ele mesmo.
A linda oriental apontou para ele, e depois para as escadas. Paulo pegou a conta e mostrou a ela, mas o papel se incendiou e virou cinzas, dissolvendo-se com fagulhas no ar. Ninguém viu. Ele achou melhor cumprir o que ela mandava. Subiu.
Preciso avisar meus amigos que ficaram no restaurante”. Começou a fazer rapidamente o caminho de volta, e já estava a menos de dez metros do pregador, quando viu mais uma daquelas mulheres: a pele alva se misturava ao vestido que nada escondia; longos cabelos negros arrematavam um forte contraste.
Ela lhe fez um gesto para que parasse, e o paralisou. Paulo só conseguia mexer os olhos e respirar. Pensava em como tudo aquilo parecia ser um prenúncio de loucura, em quão ilógica era aquela hora de almoço. Nada mais fazia sentido.
O lindo anjo esticou o braço para frente, apontou o indicador para baixo e o girou. Paulo sentiu seu corpo dar uma meia volta, ficando de costas para o pregador. Tentou se virar, mas nada.
Quando finalmente recobrou os movimentos, um estrondo enorme o ensurdeceu; o deslocamento de ar o jogou longe. Ele se chocou contra a estrutura metálica dos andaimes de um prédio em reforma, mas conseguiu se agarrar a eles. Tentava desesperadamente recobrar o equilíbrio, enquanto seus ouvidos apitavam de tal forma, que ele não conseguia ouvir os próprios pensamentos.
Firmou o pé direito numa das vigas, e começou a descer. Olhou para o pregador, e o viu pendurado na borda de um enorme buraco. Água e esgoto saíam dele, emporcalhando tudo à sua volta. Ouviam-se pipocos esporádicos, até que outra explosão ocorreu, com uma labareda subindo a quase dez metros.
Pegou a tubulação de gás”, Paulo pensou, enquanto descia. O pregador, pendurado e queimado, grita por socorro, alternando urros de dor. Paulo começa a correr em seu auxílio. Partes das fachadas dos prédios próximos caem, passando a centímetros do pobre homem pendurado.
As pessoas à volta começaram a correr, quando um enorme tentáculo negro emergiu do buraco, tateando suas bordas. Paulo já estava quase chegando ao homem que desesperadamente se agarrava à beirada da cratera, mas as quatro mulheres apareceram à sua frente, formadas lado a lado, impedindo sua passagem.
Por favor, deixa eu ajudar aquele cara — gritou para as belas impassíveis. Ao tocar no pregador, o tentáculo se levantou, abrindo as ventosas, e se abateu sobre ele, como uma ave de rapina faminta. Paulo tentou passar pelas mulheres, somente para ser paralisado de novo.
O pregador se agarrou com todas as forças à borda da cratera, mas o tentáculo se enroscou nele. Ouviu-se um forte estalo e um rápido grito de dor quando a coluna do homem foi partida ao meio, e ele começou a ser arrastado para dentro. Guardas municipais, até então paralisados pelo medo, fugiram. Uma viatura da polícia encostou. Policiais desceram e atiraram, mas apenas um urro veio do fundo daquela fossa, como resposta.
Um cheiro fétido exalou quando o pobre pregador desapareceu na cratera. Juntou-se ao do esgoto, dando a Paulo ânsias de vômito.
Um caminhão de Fuzileiros Navais veio rapidamente, na contramão da avenida Primeiro de Março. Freou bruscamente em frente à rua do Ouvidor. Os Fuzileiros Navais desceram rapidamente e cercaram o buraco. Um deles jogou o almoço fora, quando sentiu aquele cheiro. O Tenente comandante do pelotão advertiu-o, mandando que ele deixasse de ser fresco... e vomitou também. Recompuseram-se e continuaram, como se nada tivesse acontecido.
Paulo assistia àquilo tudo, paralisado. As quatro mulheres ainda lhe impediam a passagem.
Por que tão me torturando, me fazendo ver isso tudo? Deixem eu ir embora, e salvar minha vida!
Elas apenas o olharam. Várias imagens desconexas irromperam na mente de Paulo, como se fosse um filme cortado com cenas aleatórias. Futuro, presente e passado; sem ordem, sem sentido, num emaranhado de cenas desconexas. Paulo se sentiu tonto, sentindo o mundo girar, e desfaleceu.
Apenas uma mulher o observava quando abriu os olhos. Ela usava o mesmo vestido semitransparente das outras, que deixava entrever até seus pelos. Seus cabelos eram brancos. Igualmente linda, sensual. Causava a Paulo o mesmo turbilhão se sentimentos paradoxais de desejo e vergonha, tesão e autodisciplina.
Paulo se sentou, tentando desviar o olhar da região pubiana daquele anjo em forma de mulher. Olhou à sua volta, e não havia nada. Apenas um vazio branco, que não lhe permitia saber se estavam num recinto fechado, ou num espaço amplo. Não conseguia medir mentalmente as distâncias, não havia pontos de referência. O próprio chão era difuso, indefinido, confuso.
Onde estou perguntou, se dando conta do quanto aquela pergunta era clichê. A mulher, como resposta, lhe estendeu a mão. Puxou-o como se ele fosse uma pequena almofada, quase o lançando para cima. Paulo se assustou com a rapidez em que se viu de pé.
Quanto tempo fiquei desmaiado?
Ela apenas estendeu seu braço esquerdo para o lado, e uma tela se abriu em pleno ar, mostrando uma visão superior oblíqua da cratera. Já estava escurecendo, e à volta, policiais, fuzileiros navais e até soldados da Força Aérea combatiam aquela criatura. Alguns mortos espalhados à volta, e o incólume tentáculo a desafiar todas as táticas e munições empregadas.
Um homem se aproximou, pedindo que parassem, pois se tratava de uma espécie nova, e aquele poderia ser o único indivíduo. Era preciso preservá-lo, tinham de parar com o ataque! Foi partido ao meio e levado para o fundo do buraco pela criatura.
Paulo ouvia a tudo que se passava: os gritos; os tiros; e os horripilantes urros daquele monstro. Vez por outra, conseguia pegar um dos combatentes e o arremessava contra os prédios, estraçalhando-o com o choque. Ou então, agarrava um deles e o quebrava ao meio, o som alto dos ossos e tendões se partindo. Não dava tempo para a vítima gritar de dor.
No meio de tudo aquilo, um dos homens gritou várias vezes para os outros. Um helicóptero Esquilo da Força Aérea, armado com uma metralhadora, chegou e pairou sobre o cruzamento da Ouvidor com a Primeiro de Março. Os homens se afastaram, correndo o quanto podiam.
O helicóptero começou a atirar no monstro, apenas para fazê-lo se contorcer e emitir gritos de dor. Atirou tudo o que tinha, empurrando o tentáculo para dentro da cratera. Os homens que estavam no chão vibraram, com os braços para o alto, e alguns fuzileiros jogaram granadas. Elas explodiram, e todos deram gritos de vitória. Mas a alegria durou pouco...
Num ataque que mais lembrava uma cobra, o tentáculo segurou o esqui do helicóptero. O piloto puxou a alavanca do coletivo, para tentar ganhar altitude e se soltar. O monstro o puxou, e o arremessou contra a igreja de Santa Cruz dos Militares, causando uma tremenda explosão. O rotor de cauda saiu rodopiando numa dança desengonçada, indo se cravar numa banca de jornal, partindo-a ao meio.
Os militares não podiam acreditar. Ignoravam que o monstro pudesse alcançar tão longe. Paulo afastou os olhos para baixo, vendo tanta morte e destruição causada por algo inimaginável. A mulher angelical o tocou levemente na fronte, e as palavras “sacrifício” e “missão” ecoaram em sua cabeça.
O que quer que eu faça perguntou, apenas para se ver novamente naquela cena de guerra, com as quatro mulheres à sua frente. Tudo estava parado, ninguém se mexia. Até as chamas do helicóptero caído estavam paradas.
O anjo oriental deu um passou à frente. As outras três colocaram suas mãos direitas nos ombros e na cabeça dela. Ondas de luz começaram a se propagar pelos braços das três mulheres de trás daquela linda oriental, fazendo-a brilhar, mais e mais. Paulo protegeu os olhos. Ela desnudou os seios e pegou a mão dele, convidando-o a prová-los. Paulo o fez, a princípio com uma certa relutância, mas depois, com um prazer puro, sem erotismo. Como se fosse amor.
Paulo se saciou, sentindo-se amado e poderoso. A oriental se vestiu novamente, e todos os quatro anjos lhe abriram passagem. As chamas crepitaram, os gritos voltaram, os homens continuaram a correr. Paulo chegou à borda do buraco. O monstro se virou para ele e abriu suas ventosas, mas parou.
Vem, porra! Tá com medo? gritou, a plenos pulmões.
Sentiu apenas quando foi rasgado ao meio. A dor foi rápida, libertadora, sublime. Seu sangue escorreu como uma cascata vermelha sobre a pele do tentáculo, penetrando-a, cortando-a, queimando-a. Paulo viu o próprio corpo dilacerado ser arremessado pelo monstro, mas seu sangue continuou a matá-lo, pois agora emitia gritos de dor que gelavam o espírito de quem quer que os ouvisse.
Por fim, bolhas começaram a surgir por onde o sangue de Paulo tinha escorrido e penetrado. Cresceram ao tamanho de bexigas e explodiram, despedaçando a criatura, espalhando pedaços pelos prédios e ruas. Paulo não se mexeu.
Os restos do tentáculo fumegavam e murchavam, derretendo e sumindo. Um dos prédios, com a estrutura fragilizada por causa do enorme buraco, desabou dentro dele, cobrindo-o. Paulo se virou, e as quatro mulheres sumiram. Apenas o anjo de cabelos brancos estava lá.
O que foi tudo isso? De onde veio essa coisa? Por quê?

Sua resposta foi a mão daquela mulher maravilhosa. Segurou-a, e caminhou com ela para outra vida. Monstros que se danem.

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